Direito a Desligar: usufruir da tecnologia sem comprometer direitos
A hiperconetividade tomou conta dos nossos dias, levando à necessidade de regulamentação do dever de não incomodar/abstenção de contacto por parte dos empregadores no período de descanso dos seus colaboradores. Conheça em que consiste aquele que ficou conhecido como o direito a desligar e saiba como aplicá-lo.
Foi recentemente publicada a Lei n.º 83/2021, de 6 de dezembro, que além de alterar o regime do Teletrabalho, veio instituir o dever do empregador se abster de contactar o trabalhador no período de descanso, ressalvando-se situações de força maior, sob pena de contraordenação grave.
Perante uma realidade complexa, em que por um lado há cada vez mais pessoas sempre "ligadas”, massificando-se a síndrome de FOMO (Fear of missing Out), e por outro uma legislação que vem limitar o contacto entre o empregador e o trabalhador, importa então perceber melhor o contexto em que esta medida surge e a problemática em causa.
O caminho entre as primeiras leis laborais, o direito a desligar e o dever de abstenção de contacto
A limitação dos tempos de trabalho é uma preocupação que vem de longe. As primeiras leis laborais surgiram precisamente com a motivação de reduzir as intermináveis jornadas de trabalho, legitimando o direito ao descanso, e à recuperação física e mental do trabalhador.
Com o passar dos anos, a limitação dos tempos de trabalho passou também a ter subjacente a necessidade de partilha de emprego[1], com o objetivo de promover a sua distribuição mais equitativa por toda a população.
A respeito destas temáticas, a própria Constituição da República Portuguesa prevê, na alínea d) do n.º 1 do art.º 59.º, que todos os trabalhadores têm direito "ao repouso e aos lazeres, a um limite máximo da jornada de trabalho, ao descanso semanal e a férias periódicas pagas”. Neste sentido segue também o art.º 24.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
Com a revolução tecnológica, exponenciada pela massificação do uso da internet, surge uma nova preocupação social – o direito a não desligar - que motivou a revisão da legislação laboral, instituindo-se o dever (como regra) de abstenção de contacto no período de descanso. Mas por que razão é esta regra assim tão importante?
Hiperconetividade, um benefício da era digital ou ameaça aos direitos humanos?
Já muito se tem falado dos perigos da tecnologia, nomeadamente da Inteligência Artificial e Direitos Humanos, ameaça ou oportunidade. É verdade, também, que a pandemia generalizou o teletrabalho e a necessidade de muitos profissionais se munirem das tecnologias necessárias para estarem ligados remotamente às organizações para as quais prestam serviços, no entanto, é fundamental garantir os direitos dos trabalhadores em tempos de pandemia.
Este contexto escancarou as portas, já antes entreabertas, a solicitações contínuas, deixando, muitas vezes, pouca margem para que os trabalhadores pudessem usufruir do direito ao descanso, gerando-se um ambiente de receios provocados pela necessidade de estarem sempre ligados e disponíveis. Esses receios são essencialmente três:
Receio de perder o emprego
Muitas são as
vezes em que os trabalhadores sentem sérias dificuldades em desligar por receio
de perder o emprego.
Evolução na
carreira e melhores condições salariais
Outros
casos existem em que, mesmo tendo tempo para descanso, os trabalhadores acabam
por trabalhar "fora do seu horário”, para trabalharem mais ou apresentar mais
resultados com vista a poderem progredir de forma mais rápida ou ter acesso a
melhores condições salariais. Ficarem "melhor vistos” dentro da empresa/ser mais reconhecidos
Por outro lado, não raras vezes, há a interpretação de que um trabalhador que se disponibilize para trabalhar pela noite dentro ou aos fins de semana tem um grau de compromisso maior para com a entidade empregadora, mostrando um comprometimento e lealdade supremos.Maior disponibilidade representará melhor desempenho?
Face a estas interpretações do trabalho, o direito a desligar é muitas vezes negligenciado. Muitos profissionais tudo fazem para estar sempre contactáveis, em qualquer sítio e a qualquer hora, sempre disponíveis para o trabalho[2], na expectativa de serem considerados melhores profissionais. Nada mais enganador, diria, pois isso traz certamente efeitos nefastos para a produtividade, dado que não tendo tempo de descanso real, o cansaço acumula-se e a disponibilidade física e mental diminui, acarretando menor produtividade e aumentando a possibilidade de falha humana.
Independente da legislação que regulamenta agora o dever de abstenção de contacto no período de descanso, cabe a cada um de nós impor os seus próprios limites, e a cada empregador respeitar os tempos de trabalho de cada colaborador, sem fazer disso um fator de promoção ou despromoção. Há uma catástrofe social a emergir dessa necessidade de estar sempre ligado e todos podemos fazer algo para a evitar.
FOMO, a catástrofe social que motiva o direito a desligar
É uma espécie de surdina que se alastra sem que muitos o percebam. Vivemos numa sociedade conectada, desde os mais jovens aos mais velhos, que apresenta riscos psicossociais como o stress, a ansiedade ou o burn out. A síndrome FOMO, sigla para fear of missing out, está cada vez mais generalizada, aumentando a ansiedade social ligada à exclusão.
No contexto da relação laboral, esta síndrome faz com que os trabalhadores optem por manter-se sempre ligados devido ao receio de perderem uma oportunidade que poderá ser aproveitada por outros colegas mais disponíveis, ou até mesmo por receio de dispensa.
Todas estas inseguranças levam a um caminho: há profissionais que se obrigam a estar sempre ligados ao ponto de essa constante conexão se tornar uma obsessão[3].
Pânico do esquecimento gera um novo tipo de escravatura
Apesar de só recentemente se começar a debater mais este fenómeno, a síndrome FOMO tem sido estudada e há autores que chamam a atenção para os receios relatados pelos trabalhadores.
Teresa Moreira Coelho a este respeito refere"(…) há um certo pânico do esquecimento, pois receiam que a obrigação de desconexão leve a que se tornem dispensáveis, a que se associa um certo receio de má reputação junto dos colegas já que há, infelizmente trabalhadores que têm a convicção de que o "melhor” trabalhador é o que está não em "desconexão” mas em hiperconexão e comprometido com a empresa (…)[4]”, podendo estar a criar-se ou a reforçar aquilo que seria "quase um novo tipo de escravatura (…), que está a colocar em causa um dos primeiros direitos consagrados dos trabalhadores – o do direito a um descanso efetivo entre jornadas de trabalho”[5].
Dever de não incomodar ou direito ao descanso, duas faces da mesma moeda
É neste contexto de salvaguarda dos direitos humanos e salvaguarda ou reinstituição do direito ao descanso que surge o "dever de não incomodar”, agora plasmado no Código do Trabalho Português, que impende sobre os empregadores, no sentido de salvaguardar as condições para a recuperação física e mental através de um descanso efetivo dos seus trabalhadores – o chamado direito ao descanso.
Autores como Leal Amado lembram-nos que "(…) não reservando qualquer espaço à sua autodisponibilidade, então [o trabalhador] deixa de ser dono de qualquer fração do seu tempo, abdicando da sua liberdade por completo, passando a ser um servo e já não um ser livre. Na verdade, a subordinação jurídica que surge por via da celebração de um contrato de trabalho, em que o trabalhador abdica de uma parte da sua liberdade, tem de ser em cada dia recuperada, quando o trabalhador termina a sua jornada de trabalho”[6].
Apesar de no início da discussão desta temática muitos autores falarem num direito do trabalhador à desconexão, muitos foram aqueles que evoluíram este conceito para a formulação que acabou por ser acolhida na legislação agora publicada - um dever do empregador de se abster de contactar o trabalhador e de não o perturbar.
Incomodar apenas em "situações de força maior”
Apesar de instituir este dever de abstenção de contactos, a legislação prevê algumas exceções quando se trate de "situações de força maior”.
Este é um conceito que terá de ser densificado pela doutrina e jurisprudência, sob pena de deixar os empregadores com menor literacia jurídica mais desprotegidos, pois terão dificuldade em perceber, perante uma situação concreta, se podem ou não ligar o seu colaborador, se poderão ou não pedir-lhe que venha à empresa, se poderão ou não enviar um email, enviar uma mensagem no teams, no zoom ou outra plataforma, porque não saberão se se enquadra ou não neste conceito, nestas exceções…
Caso de força maior será aquele que, podendo ser prevenido, não poderia ser evitado, nem em si mesmo nem nas suas consequências, podendo tratar-se de acontecimentos naturais ou de ações humanas.
Mas seria mais fácil para os empregadores e para os trabalhadores se estivessem identificadas, concretizadas, balizadas, ainda que a título exemplificativo, as exceções a este dever de não incomodar, tal como acontece, por exemplo, com o trabalho suplementar.
Algumas dúvidas que carecem de mais explicação
Esta norma impõe ao empregador o dever de se abster de contactar o trabalhador no período de descanso. Sendo a Lei sujeita a interpretações, há muitas questões que se podem levantar, nomeadamente:
- O que se deve entender como empregador?
- Este dever de se abster de contactar o trabalhador no período de descanso aplica-se a todas as pessoas da empresa ou apenas se aplica ao empregador no sentido mais estrito?
Na prática é necessário que, quer empregadores, quer trabalhadores tenham bem claro se este dever abrange também a chefia/superiores hierárquicos e os próprios colegas, pois só assim será possível que todos usufruam do seu direito a desligar.
Ou seja, parece-nos que não poderá aqui ser adotada a noção mais estrita, mas sim a noção mais ampla, doutra forma, seria fácil contornar a norma, pedindo a um colega do trabalhador que fizesse o contacto e continuar a boicotar os tempos de descanso do trabalhador.
É certo que a tecnologia trouxe uma imensidão de vantagens. Agora, cabe a cada um de nós torná-la um instrumento facilitador do nosso dia a dia, e não um meio castrador das nossas liberdades individuais e coletivas, tornando-nos, de novo, servos e não homens e mulheres livres.
Cumprir todas as obrigações legais e fiscais das empresas é simples com a PRIMAVERA
Desde o teletrabalho, passando pelas faltas e direitos a férias e baixas, subsídios e remunerações e outros aspetos que constam no Código do Trabalho, todos os empreradores devem conseguir responder de forma simples e sem esforço. Mas para dar resposta a todas as questões que envolvem os Recursos Humanos das empresas, é fundamental ter o total controlo de todas as obrigações legais e fiscais. Esta gestão tem hoje um papel mais estratégico dentro das organizações. E a PRIMAVERA tem as soluções que respondem a esta crescente necessidade.
As soluções de gestão de RH PRIMAVERA envolvem todas as pessoas da organização na criação de valor. De uma forma dinâmica, colaborativa e em tempo real, a informação flui de modo transparente pela organização, promovendo a partilha e corresponsabilização, a partir de qualquer lugar ou dispositivo.[1] Veja-se neste sentido MOREIRA COELHO, Teresa, Algumas questões sobre o direito à desconexão in Minerva: Revista de Estudos Laborais, Ano IX – I da 4.ª Série – n.º 2, 2019, p. 138.
[2] Neste sentido, veja-se SUPIOT, Alain, Travail, Droit et technic, in DS, n. º 1, 2002, p.21.
[3] Veja-se, neste sentido, DEGRYSE, Digitalisation of the economy and its impact on labour markets, in ETUI Working Paper 2016.02, p.45.
[4] MOREIRA COELHO, Teresa, op. cit., p. 154.
[5] MOREIRA
COELHO, Teresa, A Conciliação entre a vida profissional e a vida pessoal e
familiar no movimento do trabalho 4.0, in Labour & Law issues, vol. 3, n.º
1, 2017, p. 5.
[6] SUPIOT, Alain, Crítica ao direito do Trabalho, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2016.