Teletrabalho obrigatório: de ilustre desconhecido a melhor amigo?
O regime de teletrabalho consagrado nos artigos 165.º a 170.º do Código do Trabalho era, antes da pandemia associada à Covid-19, praticamente um desconhecido dos trabalhadores e empregadores portugueses, dado que era um regime pouco equacionado na definição da prestação de trabalho. Bastava perguntar num círculo profissional ou pessoal se conheciam alguém que estivesse em teletrabalho, e a resposta evidenciava de imediato esse desconhecimento.
No entanto, mesmo antes desta pandemia, já se vinha notando um crescimento na adoção do teletrabalho. Nesse sentido, e de acordo com o Instituto Nacional de Estatística (INE), no segundo trimestre de 2015 existiam cerca de 68.300 trabalhadores em teletrabalho, passando para 120.700 nosegundo trimestre de 2019 (quase o dobro em quatro anos).
Esta tendência continua crescente, pois, de acordo ainda com o INE, no segundo trimestre de 2020, passamos a ter cerca de 1 milhão de trabalhadores em teletrabalho obrigatório, tendo-se assistido a um crescimento de 23,1% em um ano, sendo a pandemia associada à COVID-19 o grande impulsionador desse crescimento.
Por outro lado, o teletrabalho obrigatório tem, nos últimos meses, estado na ribalta, sendo bastante falado nos meios de comunicação social em resultado dos diplomas que têm sido aprovados e que tocam este tema. Veja-se a Resolução do Conselho de Ministros n.º 92-A/2020, de 02-11, que no art.º 28.º, n.º 10 veio determinar a obrigatoriedade da adoção do regime de teletrabalho, sempre que as funções exercidas o permitam, nos 121 concelhos mais afetados pelo COVID, acrescendo, assim, aos três concelhos onde o regime do teletrabalho já era obrigatório desde 23/10/2020 (Felgueiras, Lousada e Paços de Ferreira).
Já o Decreto-Lei n.º 94-A/2020, de 03/11 veio aditar um artigo sobre teletrabalho obrigatório ao Decreto-Lei n.º 79-A/2020, de 01 de outubro, que estabeleceu "um regime excecional e transitório de reorganização do trabalho e de minimização de riscos de transmissão da infeção da doença COVID-19 no âmbito das relações laborais”.
Regime de teletrabalho obrigatório para quem tem condições para o exercer
Foi aditado o artigo 5.º-A ao diploma anteriormente referido, concretizando o regime de teletrabalho obrigatório. Assim, para que se verifique essa obrigatoriedade, é necessário que as funções em causa o permitam e o trabalhador disponha de condições para as exercer, não sendo necessário qualquer acordo escrito entre o empregador e o trabalhador.
Caso o empregador entenda não estarem reunidas as condições, ou seja, se achar que o teletrabalho é incompatível com as funções do trabalhador ou que o trabalhador não dispõe de condições técnicas adequadas à efetivação do teletrabalho obrigatório, terá de comunicar a sua decisão ao trabalhador por escrito e fundamentadamente, tendo ainda de demonstrar tal situação.
Prevê-se que, face a uma comunicação deste tipo, o trabalhador possa, nos três dias úteis posteriores à comunicação do empregador, solicitar à Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) que verifique a legalidade dessa decisão, tendo a ACT de decidir no prazo de cinco dias úteis. Nessa verificação, a ACT terá em conta, por exemplo, a atividade para que o trabalhador foi contratado e o exercício anterior da atividade em regime de teletrabalho ou através de outros meios de prestação de trabalho à distância.
Cabe ao empregador disponibilizar os equipamentos de trabalho e de comunicação necessários à prestação de trabalho em regime de teletrabalho obrigatório pelos trabalhadores abrangidos. Mas, quando isso não seja possível, o teletrabalho pode ser realizado através dos meios que o trabalhador detenha, competindo ao empregador a devida programação e adaptação às necessidades inerentes à prestação do teletrabalho, sendo para isso necessário o consentimento do trabalhador.
Já ao trabalhador caberá informar, por escrito, o empregador sobre os motivos do seu impedimento para o teletrabalho no caso de não dispor de condições para exercer as funções neste regime, designadamente por não dispor de condições técnicas ou habitacionais adequadas.
Regulamentação clarifica finalmente condições do teletrabalho obrigatório
Este diploma vem, ainda, esclarecer alguns pontos que até ao momento não tinham sido clarificados cabalmente, nomeadamente:
- o trabalhador em regime de teletrabalho tem os mesmos direitos e deveres dos demais trabalhadores;
- não há redução de retribuição, nos termos previstos no Código do Trabalho ou em Instrumento de regulamentação coletiva aplicável;
- não há alteração aos limites do período normal de trabalho e outras condições de trabalho, segurança e saúde no trabalho;
- não há qualquer limitação ao direito à reparação de danos emergentes de acidente de trabalho ou doença profissional;
- é mantido o direito a receber o subsídio de refeição que já lhe fosse devido.
De notar que o legislador excluiu da obrigatoriedade de teletrabalho os trabalhadores de serviços essenciais abrangidos pelo artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, ou seja, profissionais de saúde, das forças e serviços de segurança e de socorro, incluindo os bombeiros voluntários, e das forças armadas, os trabalhadores dos serviços públicos essenciais, de gestão e manutenção de infraestruturas essenciais, bem como outros serviços essenciais sujeitos a mobilização para o serviço ou prontidão. Também estão excluídos os trabalhadores integrados nos estabelecimentos a que se refere o n.º 3 do artigo 2.º do DL acima referido.
Ora, o facto de o teletrabalho obrigatório estar debaixo dos holofotes e de estar a ser, quanto a nós, um forte aliado no combate à propagação do vírus, permitindo que o país não pare, tem feito com que se comece a conhecer e debater mais este regime.
Teletrabalho obrigatório: um regime que representa muitas vantagens
Muitas têm sido as vantagens apontadas ao teletrabalho, além das que se acaba de referir. Veja-se, por exemplo, os ganhos de tempo que vêm da omissão das deslocações de casa para o trabalho e vice-versa, traduzindo-se em mais tempo disponível e na redução do stress causado pelo enfrentar do trânsito. Também se refere que o teletrabalho traz a possibilidade de ter uma gestão mais flexível do tempo de trabalho, menos sujeita a interrupções e com maior flexibilidade da agenda. Outros benefícios apontados são as melhores condições para conciliar a vida profissional com a vida pessoal e familiar e um aumento da autorresponsabilização e maior autonomia dos trabalhadores, de tal forma que muitos são aqueles que consideram a possibilidade do teletrabalho (ainda que parcial) como um fator decisivo na hora de escolher onde trabalhar.
Algumas preocupações motivadas pelo teletrabalho
No entanto, também surgem problemáticas em torno do teletrabalho. Uma delas é a questão da saúde psicológica do trabalhador, que muitas vezes tem dificuldade em separar o espaço de trabalho do espaço pessoal, quando a sua casa passa a ser também o seu local de trabalho e que pode ter dificuldade em separar tempos de trabalho e tempos de descanso, ficando com maior instabilidade emocional.
Outra das questões é saber que estratégias seguir para criar ou manter o espírito de equipa e de empresa entre pessoas que não se conhecem pessoalmente ou que têm muito pouco contacto humano entre si.
Também se pode colocar a problemática em torno do "direito à desconexão” ou "direito à não conexão” ou, ainda, como alguns autores lhe chamam "dever de não incomodar” que impende sobre a entidade patronal nos períodos fora do tempo de trabalho. Como controlar ou quantificar o tempo de trabalho no teletrabalho sem cair na tentação da violação de privacidade do trabalhador e mantendo a segurança e privacidade dos seus dados pessoais é outro dos desafios. Paralelamente, existem reptos à densificação do conceito de subordinação entre trabalhador e empregador no sentido mais clássico.
Perante tudo isto, a afirmação bem conhecida dos juslaboralistas, que diz que "a crise é companheira do Direito do Trabalho” sai reafirmada nestes tempos que atravessamos, colocando-se novos e antigos desafios, estes com uma nova roupagem, que obrigarão a repensar, a adaptar a regulamentação existente e a tentar encontrar respostas num mundo em constante transformação.